quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Independência

Mas não a que você está pensando.

Você certamente, em discussões econômicas ou políticas, já ouviu, ou quem sabe já disse, que determinada situação pode valer em um país mas não em outro. Que determinada lei ou código penal talvez fazia sentido naquela época, hoje não faz mais. Que tentar criticar algo que acontecia séculos atrás baseado no que conhecemos sobre a sociedade hoje pode ser um anacronismo. Esse é um atributo comum nas ciências humanas. A sociedade muda, e com ela as formas de lidar com as situações.

As ciências naturais, por outro lado, não. São independentes de onde você está ou quando você está. Lembra do eclipse mês passado? Se você assim como eu estava no Brasil, você só ouviu falar dele. Mas nós fomos capazes de prever exatamente o dia, local e horário do eclipse solar do mês passado. As mesmas técnicas podem ser usadas para calcular quando ocorreu algum eclipse solar perto de 1000 A.C., assim como quando ocorrerá um eclipse no século 29. A física é exatamente a mesma. Da mesma forma, um cientista em Tóquio pode calcular a massa de um átomo de alumínio e obter o mesmo resultado que outra cientista na Nigéria ou no Chile. Não interessa onde você está, as leis da natureza independem do local ou do momento.

Mais impressionante que isso: as mesmas leis valem aqui na Terra, em outros planetas ou até mesmo em galáxias distantes! Isso nos permite por exemplo descobrir do que algumas nuvens de gás no espaço são feitas. Veja bem, aqui na Terra sabemos muito bem como identificar diferentes elementos e compostos químicos, por uma coisa que chamamos de "espectro". Espectro é a luz que um determinado material emite ou absorve. E acontece que cada material vai ter um espectro bem característico, como uma assinatura, uma impressão digital. E como as leis da natureza funcionam nos nossos laboratórios da mesma forma que a anos-luz daqui, conseguimos ver essas assinaturas em estrelas ou nuvens de gás distantes e saber do que eles são feitos.

Outra coisa bem bacana: As leis também independem de referencial. Em particular, observadores inerciais observam os mesmo fenômenos. Em outras palavras, se você estiver parado ou se movendo com velocidade constante todos os experimentos realizados darão os mesmos resultados! Um laboratório num trailer, num trem ou num avião poderá funcionar tranquilamente! Há um pouco mais de 100 anos atrás o pessoal percebeu que parecia ter um problema com as leis que descreviam a eletricidade e o magnetismo. Mas isso já foi resolvido por um carinha chamado Einstein e outros.

É isso, entre outras coisas, que torna as ciências naturais tão eficazes para explicar o que acontece e prever o que vai acontecer. Essa independência. As leis da mecânica e do eletromagnetismo são as mesmas em qualquer lugar e instante. Assim como a massa das partículas subatômicas. E a intensidade da força gravitacional. E o tempo de vida média de elementos radiativos.

Bom, exceto se você levar a sério a hipótese de universos paralelos. Nessas teorias (como as de inflação eterna e os modelos de Branas) as leis da natureza observadas podem ser diferentes em diferentes universos. Mas somente porque elas não seriam leis gerais, mas manifestações locais de outras leis, mais abrangentes. Mas isso é especulação. Vamos parar por aqui.

Até a próxima.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A Matemática do Improvável, e o Improvável do Mundo

Boa parte do nosso entendimento sobre a natureza vem de uma compreensão cada vez maior do papel que o acaso e a aleatoriedade desempenham no mundo. Por mais que as leis físicas sejam determinísticas, a nossa incapacidade de conhecer por completo as coisas que analisamos, seja por dificuldades experimentais seja por impossibilidades fundamentais (como as coisas do mundo atômico), faz com que o entendimento das probabilidades e como elas evoluem no tempo seja de extrema importância.

Utilizamos a física para entender como o mundo funciona. E por mundo, queremos dizer um bocado de coisas aparentemente bem diferentes, como um copo d'água ou uma galáxia. Um copo d'água e uma galáxia são bem similares num aspecto: são compostos por um número muito grande de partículas e conhecemos as leis que descrevem o movimento dessas partículas individualmente. Isto é, sabemos a mecânica quântica que diz como uma molécula de água se comporta, e sabemos gravitação para descrever como estrelas influenciam umas às outras gravitacionalmente. Mas quando colocamos muitas dessas partículas juntas, sejam moléculas de água ou estrelas, o "micro", o movimento individual de cada uma delas passa a ser um obstáculo para entender o comportamento do sistema "macro". A física estatística entra aí, para oferecer ferramentas que nos auxiliem a conseguir descrever esses sistemas compostos de muitas partículas, e mesmo sem saber a posição ou movimento individual de cada partícula, conseguirmos fazer cálculos e previsões extremamente precisos.

Não vou falar de física estatística neste post mais do que o parágrafo acima, mas de um elemento fundamental para entender física estatística: probabilidade. Em particular, como o nosso entendimento cotidiano sobre probabilidades está muitas vezes errado, e nos faz acreditar no oposto do que está realmente acontecendo.

Vamos começar com algo bem simples. Um jogo de cara ou coroa. Sabemos que a probabilidade de tirar uma cara é de 1 em 2, ou $1/2$, ou $50\% $. Tirar duas caras em sequência já reduz a probabilidade para $1/{2\cdot 2}=1/2^2=1/4=0,25=25\% $. Já tirar 10 caras em sequência já é uma probabilidade de $ 1/2^{10} \sim 0,09 \%$, um evento extremamente raro.

Agora pegue um maço de cartas. Embaralhe e tire uma sequência de 5 cartas quaisquer. A probabilidade de ter saído exatamente esta sequência de cartas é de 1 em 128 milhões, ou $ 0,00000078\%$. Surpreendente, não? Não. Porque alguma sequência sairia, e qualquer outra sequência teria a mesma probabilidade de ocorrer. A simples probabilidade de um evento, sem analisar qual é a pergunta que está sendo feita, não significa NADA!

Um outro exemplo. Suponha que você seja uma garota que só faz sexo com uma única pessoa, sempre com camisinha e nunca deixou de tomar a pílula. Mesmo assim, você engravida. Vocês verificam que a probabilidade da camisinha ter vazado ou estourado sem que vocês percebessem isso era absurdamente pequena. Combinado com a chance da pílula ter falhado, a chance da gravidez é menor ainda. Finalmente, você e seu parceiro concluem que não foi o sexo de vocês, mas uma visita do Espírito Santo, e decidem batizar o bebê com o nome de Jesus Segundo. O que vocês esqueceram de considerar no entanto foi que a probabilidade da visita do Espírito Santo para a vinda de um segundo messias é muito menor do que a falha da camisinha e da pílula!

Também deve ser levado em consideração o contexto. O número de pessoas atingidas por raio é pequeno quando pegamos todas as pessoas do mundo. Mas é bem menor do que se considerarmos somente pessoas que vivem em áreas rurais de regiões chuvosas, e bem maior que se considerarmos pessoas que vivem em centros urbanos de regiões com pouca chuva. Quando lidamos com o fator humano a coisa fica muito mais complicada. A probabilidade de tirar um 3 num dado é fácil de calcular (1/6) mas a de alguém gritar ao ver um rato envolve fatores muitas vezes fora do nosso controle.

Dois casos reais ilustram como falhas lógicas podem levar inocentes para a prisão ou libertar pessoas culpadas. São os casos de O.J. Simpson e de Sally Clark.

Em Junho de 1994 o jogador de futebol americano e ator O. J. Simpson foi acusado de assassinar sua esposa. Simpson já tinha um histórico de acusações por agressões contra ela. Os advogados de defesa usaram como argumento que apenas 1 em cada 2500 casos de violência doméstica terminam em assassinato, logo torná-lo suspeito do assassinato só por causa de seu histórico não faria sentido. Mas esse número deveria ser utilizado para mulheres ainda vivas. A esposa de O. J. já estava morta, então a pergunta correta deveria ser "uma vez que a mulher foi assassinada, qual a probabilidade de ter sido o marido agressor?". Neste caso, a resposta dá algo próximo de 90% ou mais. O veredito do juri, mesmo com todas as evidências, mas influenciados por advogados de defesa muito bons, foi de inocente.

Em 1998 a britânica Sally Clark foi acusada de assassinar dois filhos antes de completarem 1 ano de idade. A causa da morte não foi clara, e poderia ter sido SIDS, ou SMSI, Síndrome da Morte Súbita Infantil. No entanto, os promotores alegaram que a probabilidade de uma SMSI era extremamente pequena, e de duas então, menor ainda. Alegaram que a chance da mãe sofrer de Síndrome de Münchhausen "por procuração", um transtorno mental onde a pessoa provoca danos a outros para conseguir atenção, era maior que duas SMSIs em sequência. Duas coisas importantes não foram levadas em conta pelos procuradores. Primeiro, ter a síndrome não significa ter cometido os dois assassinatos. Segundo, uma segunda morte por SMSI se torna bastante mais provável se o primeiro filho morreu disso, pois pode haver uma predisposição genética dos pais para esta síndrome. Sally Clark foi condenada e presa.Uma revisão do caso e dessas falácias (chamadas "falácias do procurador") a liberou da prisão 4 anos mais tarde, mas a experiência por ter sido condenada injustamente a afetou profundamente. Adquiriu vários transtornos após sua prisão, além de um sério alcoolismo, e uma intoxicação por álcool a matou em 2007, aos 43 anos de idade.

A chance de um evento ocorrer ou não é algo importante para o nosso entendimento sobre o mundo, mas o que realmente essa probabilidade está nos dizendo deve ser visto com cautela. Principalmente se esse dado pode ser usado para prejudicar ou beneficiar injustamente alguém.
Para mais: Além dos artigos na Wikipedia sobre a falácia do procurador, existem dois livrinhos interessantes em português sobre o papel da matemática em nossa vida cotidiana, O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow, e O Universo e a Xícara de Chá, de K. C. Cole.

sábado, 26 de novembro de 2016

A física na crise dos mísseis cubanos de 1962

Hoje, 26 de Novembro de 2016, lamenta-se ou celebra-se a morte de Fidel Castro, ditador/líder revolucionário, dependendo de quem diz. Vamos aqui aproveitar o episódio para aprender sobre a importância da física para um dos episódios mais ameaçadores do século passado.

Um rápido resumo histórico: Em 1959 Fidel Castro, seu amigo "Che" e seus guerrilheiros conseguem depor o ditador militar Fulgêncio Batista, aliado dos Estados Unidos, e iniciar um regime político com a promessa de ser do povo cubano para o povo cubano. No entanto, a reação dos EUA foi constante, e permanecer uma ilha, geografica e politicamente, não garantiria a sobrevivência do regime e do governo revolucionário. Naquela época, clima tenso de guerra fria, de Macarthismo, de separação do mundo em imperialistas capitalistas e comunistas comedores de criancinhas, se seu inimigo era um, era natural se aliar ao outro. Foi o que Cuba fez se aliando à União Soviética.

Nessa época também se corria para desenvolver armas para ameaçar o outro lado. Numa guerra de grande escala, basicamente existem duas opções: uma é deixar a bomba cair do alto na cabeça do coleguinha, outra é lançar a bomba da sua casa diretamente para a casa do coleguinha. A primeira exige uma força aérea bem desenvolvida, com aviões capazes de voar a grandes alturas por longos períodos, e a segunda exige tecnologia de foguetes avançada. Se você tiver bombas nucleares colocadas em foguetes de longo alcance, a ameaça é garantida.

Bombas Nucleares

Uma bomba nuclear é um explosivo que aproveita a energia liberada em processos de fissão ou fusão nuclear. Para uma mesma quantidade de explosivo, uma bomba nuclear libera uma energia cerca de 1 milhão de vezes maior que uma bomba de combustão comum. Isso porque a energias potenciais armazenadas nos núcleos atômicos são 1 milhão de vezes mais intensas que a energias potenciais químicas liberadas num processo de combustão como a queima da pólvora.

Para entender o porquê disso, lembre-se que a energia potencial entre duas cargas é proporcional ao inverso da distância entre elas, isto é $$ E_p = \frac{k q_1 q_2}{d} $$ Um processo de combustão envolve reorganizar os elétrons ao redor das moléculas para formar novas moléculas. As distâncias típicas aí são da ordem de $10^{-9}$ metros. Por outro lado, um processo de fusão ou fissão nuclear envolve mexer no próprio núcleo atômico, e aí estamos falando de distâncias de aproximadamente $10^{-14}$ metros. Assim, a energia envolvida num processo nuclear seria no mínimo $10^5$ ou $100000$ (cem mil) vezes maior que dum processo químico. Quando incluímos cálculos mais precisos ainda chegamos no valor de 1 milhão.

No box ao fim do post incluo um simulador da explosão de diferentes tipos de bombas.  

De acordo com este artigo da revista Foreign Policy, em 1962 os Estados Unidos tinham um poder nuclear de aproximadamente 40 mil bombas de Hiroshima, enquanto a União Soviética cerca de 10 mil. Mas ter esse poder destrutivo não significa nada se você não conseguir jogar na cabeça do seu melhor inimigo.

Tipos de Mísseis

Um míssil é um foguete, um aparato aerodinâmico que ganha energia mecânica à medida que consome combustível. Um míssil balístico é um que esgota todo o seu combustível bem antes de atingir o alvo, e a partir daí ele segue simplesmente pelo seu movimento balístico usual (lembra das aulas no primeiro ano?). Quanto mais combustível, mais energia, e mais longe consegue chegar. Só que quanto mais longe, mais difícil fazer cair exatamente onde você quer. Então ajustes finos da trajetória comunicados por rádio, por exemplo, se tornam necessários. Adicionalmente, mais combustível significa mais pesado, o que dificulta também as coisas.

Os mísseis são classificados por seus alcances. Os mísseis balísticos são abreviados em SR, MR e IR, que significa respectivamente Short (curto), Medium (médio) e Intermediate Range (intermediário alcance) , seguido de BM, Ballistic Missile. Depois desses, os temidos ICBMs, Intercontinental Ballistic Missiles, ou Mísseis Balísticos Intercontinentais.

Tipo Alcance
SRBM (curto) < 1000 km
MRBM (médio) 1000 km a 3000 km
IRBM (intermediário) 3000 km a 5500 km
ICBM (Intercontinental) > 5500 km
Dica: sugiro brincarem no Google Maps e ver o tipo de míssil necessário entre países de sua escolha.

Mísseis em 1962

Numa guerra entre as duas maiores potências, não basta ter bombas nucleares. Elas precisam chegar até o alvo. Uma maneira é usando Bombers, aviões bombardeiros. De acordo com o artigo da revista Foreign Policy, enquanto em 1962 os EUA contavam com cerca de 1000 Bombers a URSS possuía um décimo disso. Outra opção é mandar as bombas por mísseis. Como a distância entre quaisquer pontos entre os EUA e União Soviética é superior a 8000 km, os mísseis intercontinentais são fundamentais nesse cenário. Nessa época, os EUA contavam com 200 ICBMs prontos para serem colocados no ar, enquanto a URSS com algo em torno de 50. Além disso, os EUA já tinham bases com mísseis de médio e intermediário alcance na Itália e na Turquia, o que colocava a União Soviética em enorme desvantagem.

Assim, a revolução em Cuba e a necessidade de apoio internacional veio num bom momento para Khrushchev. A distância de Cuba para os EUA está entre 400 km e 5000 km. Com mísseis de médio alcance já se seria capaz de destruir grandes cidades, enquanto com os baratos mísseis de curto alcance já se poderia provocar um gigantesco estrago na Flórida. E foi o que a União Soviética fez ao deslocar vários regimentos de mísseis, além da artilharia anti-balística, para a ilha. A movimentação foi vista por aviões espiões dos Estados Unidos, o que deixou ambas as potências muito próximas de iniciarem um ataque.

O fim da crise

Depois de um bom tempo de tensão, e alguns dias em que o mundo inteiro poderia jurar que a Terceira Guerra Mundial estava prestes a ter início, Khrushchev e Kennedy chegaram num acordo. A União Soviética retiraria seus mísseis de Cuba, os EUA retirariam seus mísseis da Itália e da Turquia, além da promessa de jamais invadir Cuba. Além disso, se estabaleceu uma linha de comunicação direta entre Washington e Moscou, para evitar "mal-entendidos" futuros.

De certa forma, a crise dos mísseis de Cuba foi o ápice da tensão e o início da queda da tensão entre as duas potências. E a pequena ilha, que hoje vê a morte de sua personalidade mais importante (para o bem ou o mal), teve o protagonismo desse episódio.
Para mais: Além dos infinitos artigos da Wikipédia sobre a crise dos mísseis e os detalhes sobre cada míssil da época, recomendo ainda esta postagem interessante do site Russian Space Web, além da matéria já linkada lá em cima da revista Foreign Policy. Recomendo ainda esse simulador de explosões nucleares.