sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A Matemática do Improvável, e o Improvável do Mundo

Boa parte do nosso entendimento sobre a natureza vem de uma compreensão cada vez maior do papel que o acaso e a aleatoriedade desempenham no mundo. Por mais que as leis físicas sejam determinísticas, a nossa incapacidade de conhecer por completo as coisas que analisamos, seja por dificuldades experimentais seja por impossibilidades fundamentais (como as coisas do mundo atômico), faz com que o entendimento das probabilidades e como elas evoluem no tempo seja de extrema importância.

Utilizamos a física para entender como o mundo funciona. E por mundo, queremos dizer um bocado de coisas aparentemente bem diferentes, como um copo d'água ou uma galáxia. Um copo d'água e uma galáxia são bem similares num aspecto: são compostos por um número muito grande de partículas e conhecemos as leis que descrevem o movimento dessas partículas individualmente. Isto é, sabemos a mecânica quântica que diz como uma molécula de água se comporta, e sabemos gravitação para descrever como estrelas influenciam umas às outras gravitacionalmente. Mas quando colocamos muitas dessas partículas juntas, sejam moléculas de água ou estrelas, o "micro", o movimento individual de cada uma delas passa a ser um obstáculo para entender o comportamento do sistema "macro". A física estatística entra aí, para oferecer ferramentas que nos auxiliem a conseguir descrever esses sistemas compostos de muitas partículas, e mesmo sem saber a posição ou movimento individual de cada partícula, conseguirmos fazer cálculos e previsões extremamente precisos.

Não vou falar de física estatística neste post mais do que o parágrafo acima, mas de um elemento fundamental para entender física estatística: probabilidade. Em particular, como o nosso entendimento cotidiano sobre probabilidades está muitas vezes errado, e nos faz acreditar no oposto do que está realmente acontecendo.

Vamos começar com algo bem simples. Um jogo de cara ou coroa. Sabemos que a probabilidade de tirar uma cara é de 1 em 2, ou $1/2$, ou $50\% $. Tirar duas caras em sequência já reduz a probabilidade para $1/{2\cdot 2}=1/2^2=1/4=0,25=25\% $. Já tirar 10 caras em sequência já é uma probabilidade de $ 1/2^{10} \sim 0,09 \%$, um evento extremamente raro.

Agora pegue um maço de cartas. Embaralhe e tire uma sequência de 5 cartas quaisquer. A probabilidade de ter saído exatamente esta sequência de cartas é de 1 em 128 milhões, ou $ 0,00000078\%$. Surpreendente, não? Não. Porque alguma sequência sairia, e qualquer outra sequência teria a mesma probabilidade de ocorrer. A simples probabilidade de um evento, sem analisar qual é a pergunta que está sendo feita, não significa NADA!

Um outro exemplo. Suponha que você seja uma garota que só faz sexo com uma única pessoa, sempre com camisinha e nunca deixou de tomar a pílula. Mesmo assim, você engravida. Vocês verificam que a probabilidade da camisinha ter vazado ou estourado sem que vocês percebessem isso era absurdamente pequena. Combinado com a chance da pílula ter falhado, a chance da gravidez é menor ainda. Finalmente, você e seu parceiro concluem que não foi o sexo de vocês, mas uma visita do Espírito Santo, e decidem batizar o bebê com o nome de Jesus Segundo. O que vocês esqueceram de considerar no entanto foi que a probabilidade da visita do Espírito Santo para a vinda de um segundo messias é muito menor do que a falha da camisinha e da pílula!

Também deve ser levado em consideração o contexto. O número de pessoas atingidas por raio é pequeno quando pegamos todas as pessoas do mundo. Mas é bem menor do que se considerarmos somente pessoas que vivem em áreas rurais de regiões chuvosas, e bem maior que se considerarmos pessoas que vivem em centros urbanos de regiões com pouca chuva. Quando lidamos com o fator humano a coisa fica muito mais complicada. A probabilidade de tirar um 3 num dado é fácil de calcular (1/6) mas a de alguém gritar ao ver um rato envolve fatores muitas vezes fora do nosso controle.

Dois casos reais ilustram como falhas lógicas podem levar inocentes para a prisão ou libertar pessoas culpadas. São os casos de O.J. Simpson e de Sally Clark.

Em Junho de 1994 o jogador de futebol americano e ator O. J. Simpson foi acusado de assassinar sua esposa. Simpson já tinha um histórico de acusações por agressões contra ela. Os advogados de defesa usaram como argumento que apenas 1 em cada 2500 casos de violência doméstica terminam em assassinato, logo torná-lo suspeito do assassinato só por causa de seu histórico não faria sentido. Mas esse número deveria ser utilizado para mulheres ainda vivas. A esposa de O. J. já estava morta, então a pergunta correta deveria ser "uma vez que a mulher foi assassinada, qual a probabilidade de ter sido o marido agressor?". Neste caso, a resposta dá algo próximo de 90% ou mais. O veredito do juri, mesmo com todas as evidências, mas influenciados por advogados de defesa muito bons, foi de inocente.

Em 1998 a britânica Sally Clark foi acusada de assassinar dois filhos antes de completarem 1 ano de idade. A causa da morte não foi clara, e poderia ter sido SIDS, ou SMSI, Síndrome da Morte Súbita Infantil. No entanto, os promotores alegaram que a probabilidade de uma SMSI era extremamente pequena, e de duas então, menor ainda. Alegaram que a chance da mãe sofrer de Síndrome de Münchhausen "por procuração", um transtorno mental onde a pessoa provoca danos a outros para conseguir atenção, era maior que duas SMSIs em sequência. Duas coisas importantes não foram levadas em conta pelos procuradores. Primeiro, ter a síndrome não significa ter cometido os dois assassinatos. Segundo, uma segunda morte por SMSI se torna bastante mais provável se o primeiro filho morreu disso, pois pode haver uma predisposição genética dos pais para esta síndrome. Sally Clark foi condenada e presa.Uma revisão do caso e dessas falácias (chamadas "falácias do procurador") a liberou da prisão 4 anos mais tarde, mas a experiência por ter sido condenada injustamente a afetou profundamente. Adquiriu vários transtornos após sua prisão, além de um sério alcoolismo, e uma intoxicação por álcool a matou em 2007, aos 43 anos de idade.

A chance de um evento ocorrer ou não é algo importante para o nosso entendimento sobre o mundo, mas o que realmente essa probabilidade está nos dizendo deve ser visto com cautela. Principalmente se esse dado pode ser usado para prejudicar ou beneficiar injustamente alguém.
Para mais: Além dos artigos na Wikipedia sobre a falácia do procurador, existem dois livrinhos interessantes em português sobre o papel da matemática em nossa vida cotidiana, O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow, e O Universo e a Xícara de Chá, de K. C. Cole.

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